S I S T E M A P O É T I C O

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Textos selecionados dentre os autores mais interessantes do Sistema

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

São os rios



Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.


Jorge Luis Borges, escritor argentino

Trad. Pepe Escobar

terça-feira, 18 de junho de 2013

SUTILÍSSIMO ETERNO



Sutilíssimo eterno que habita
minhas saletas interiores
onde trago o tempo guardado
noturno e resignado

sutilíssimo eterno interior
que como um tálamo é
em minha alma limpa e sofrida
como água dormida em pedra

que eterna seiva alimenta
este tempo em mim retido
plumagem livre de flor
forma exata imperecível

sinto-te assim como um trunfo
branda coroa do eterno
além das nuvens, das águas
ouço o teu metal desperto

se existes no ser completo
na cinza móvel das sombras
por que retiras de mim
tudo o que em mim não é pântano?



                                  César Leal 

quinta-feira, 21 de março de 2013

Poema de Graciliano Ramos





Auto-retrato aos 56 anos


Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia.
Escreveu "Caetés" com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.
É ateu. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados.
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros "Selma" (três maços por dia).
É inspetor de ensino, trabalha no “Correio do Manhã”.
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-lhe indiferente estar preso ou solto.
Escreve à mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.
Espera morrer com 57 anos.


Graciliano Ramos faleceu em 1953, aos 60 anos.

Direitos autorais: Creative Commons - CC BY 3.0

quarta-feira, 20 de março de 2013

[desvirtual provisório]


Poemas de Wellington de Melo


[A proto-M@quina]


[DOR]

antes do tempo
essa dor
que me rasga o estômago
que me acompanha
latente

a dor
de existir
insistente

a dor
de não
querer
a dor
mínima dor
de ser outro
de servir
apenas
a dor
que me querem
dor

essa dor:
mínima dor
da lucidez


[BOA VONTADE]

não alimenta
a paz
minha pena

é no caos
que borbulha
o líquido essencial
ferida aberta
açoite
que me faz
letra.



[A M@quina]


[LEVIATÃ]

"Bellum omnia omnes."

penso-te, M@quina,
Leviatã de meu tempo,
amada opressora,
esmagando naus cibernéticas
que persistem no sonho.

porque nos destruímos
te queremos.
& seguimos,
nave à deriva,
sob teu olhar
cinzento.

porque j@ não somos
te despertamos,
& desperta
nos enganas:
teu signo não é outro
senão o Caos.


Do livro [desvirtual provisório], Wellington de Melo, 2008.

domingo, 10 de março de 2013

GARÇA




A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.


Manoel de Barros
Do livro "Poemas Rupestres", 2007.

O MURO


Fotografia de Isidro Vila Verde


O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
Depois o garoto explicou:
Se o muro tivesse dois metros de altura
qualquer ladrão pulava
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era.


Manoel de Barros
Do livro "Poemas Rupestres", 2007.