S I S T E M A P O É T I C O

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Textos selecionados dentre os autores mais interessantes do Sistema

sábado, 27 de fevereiro de 2010

A um poeta



Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Antero de Quental [1842-1891]

Escritor português da Geração de 70.

Soneto



Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Álvares de Azevedo

Este inferno de amar



Este inferno de amar - como eu amo!
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o Sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...


Almeida Garrett [Porto, 1799 - Lisboa, 1854]

João Batista da Silva Leitão de Almeida, visconde de Almeida Garrett, poeta e dramaturgo português.

Soul Parsifal


Arte: Parsifal vor der Gralsburg, Hans Werner Schmidt

Ninguém vai me dizer o que sentir
Meu coração está desperto
É sereno nosso amor
E santo este lugar.

Dos tempos de tristeza
Tive o tanto que era bom
Eu tive o teu veneno
E o sopro leve do luar.

Porque foi calma a tempestade
Tua lembrança: a estrela a me guiar.
Da alfazema fiz um bordado
Vem, meu amor, é hora de acordar!

Tenho anis, tenho hortelã
Tenho um cesto de flores
Eu tenho um jardim
E uma canção.
Vivo feliz, tenho amor
Eu tenho um desejo
E um coração.
Tenho coragem
E sei quem eu sou
Eu tenho um segredo
E uma oração.

Vê que a minha força é quase santa
Como foi santo o meu penar
Pecado é provocar desejo
E depois renunciar.

Estive cansado,
Meu orgulho me deixou cansado,
Meu egoísmo me deixou cansado,
Minha vaidade me deixou cansado.

Não falo pelos outros
Só falo por mim
Ninguém vai me dizer
O que sentir.

Tenho jasmim,
Tenho hortelã,
Eu tenho um anjo
Eu tenho uma irmã.
Com a saudade teci uma prece
Preparei erva-cidreira
No café da manhã.

Ninguém vai me dizer
O que sentir
E eu vou cantar
Uma canção pra mim.

Renato Russo [1960-1996]

A Minha Irmã



Depois que a dor, depois que a desventura
Caiu sobre o meu peito angustiado,
Sempre te vi, solícita ao meu lado,
Cheia de amor e cheia de ternura.

É que em teu coração ainda perdura,
Entre doces lembranças conservado,
Aquele afeto simples e sagrado
De nossa infância, ó meiga criatura.

Por isso aqui minh'alma te abençoa:
Tu foste a voz compadecida e boa
Que no meu desalento me susteve.

Por isso eu te amo, e, na miséria minha,
Suplico aos céus que a mão de Deus te leve
E te faça feliz, minha irmãzinha...

1913

Manuel Bandeira

Infância



Com mote de Maximiano Campos


Sem lei nem Rei, me vi arremessado
bem menino, a um Planalto pedregoso.
Cambaleando, cego, ao sol do Acaso,
vi o mundo rugir, Tigre maldoso.

O cantar do Sertão, Rifle apontado
vinha malhar seu Corpo furioso.
Era o Canto, demente, sufocado,
rugido nos Caminhos sem repouso.

E veio o Sonho; e foi despedaçado!
E veio o Sangue, o Marco iluminado,
a luta extraviada e a minha Grei!

Tudo apontava o Sol! Fiquei embaixo,
na Cadeia em que existe e em que me acho,
a sonhar e a cantar, sem lei nem Rei!

Ariano Suassuna

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Flores do Mal

Julieta, Juliana e Natasha, Paraty - RJ.


V
As réprobas

Como um gado pensando e nas areias deitadas,
Voltam os olhos seus ao mais longe do mar,
E seus próximos pés e suas mãos coladas
Têm langor de sorrir e tremor de chorar.

Umas, o coração cheio de confidência,
Num bosque em que a cantar os ribeiros se movem,
Vão soletrando o Amor da ingênua adolescência,
O ramo a descascar de algum arbusto jovem;

Outras são como irmãs, andam lentas e flavas,
Das rochas através, plenas de aparições,
Onde viu Santo Antão arderem como lavas
Os rubros seios nus de suas tentações;

Outras há que ao fulgor da líquida resina,
No silêncio abissal de velho antro pagão,
Chamam para aliviar a febre que alucina
Baco, o deus que adormece o remorso e a ilusão!

E outras cuja garganta ama os escapulários,
Sabem em sua roupa um chicote esconder,
E misturam na noite, em bosques solitários,
As lágrimas da dor e a espuma do prazer.

Ó monstros do martírio, ó sombras virginais!
Almas a desprezar a pobre realidade,
Com sexo e devoção, o infinito buscais,
Estrangulada a voz de lamento e saudade,

Que na cripta infernal tanto buscou minha alma,
Pobres irmãs a um tempo eu vos amo e respeito
Por vossa sede em vão e por vossa dor calma,
E estas urnas de amor que vos enchem o peito.


Charles Baudelaire [1821-1867]

Poema do livro As Flores do Mal (Les Fleurs du Mal), lançado originalmente em 1857, em Paris. Seis poemas originais do livro foram alterados, devido à intervenção do poder público, que o acusou de "ultrajar a moral pública", multando-o em 300 francos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

[soneto]



Busque Amor novas artes, novo engenho
para matar-te, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperança me mantenho!
vede que perigosas seguranças:
que não temo contrastes nem mudanças
andando em bravo mar perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde
vem não sei como e dói não sei porquê.

Luís Vaz de Camões

Cartas de amor



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de
amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos

Confronto



Bateu Amor à porta da Loucura.
"Deixa-me entrar - pediu - sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão."

A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo,
de humano que era, assim tão inumano.

E exclama: "Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,

enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar."

Carlos Drummond de Andrade [1902-1987]

A Estrela



Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.

Manuel Bandeira [1886-1968]

"Coração, já repousavas..."



Coração, já repousavas,
já não tinhas sojeição,
já vivias, já folgavas;
Pois por que te sojugavas
outra vez, meu coração?

Sofre, pois te não sofreste
na vida, que já vivias;
sofre, pois te tu perdeste;
sofre, pois não conheceste
como t'outra vez perdias!

Sofre, pois já livre estavas
e quiseste sojeição;
sofres, pois te não lembravas
das dores de que escapavas,
sofre, sofre, coração!

Jorge de Aguiar [Séc. XV-XVI]

Pois nací nunca vi Amor



Pois nací nunca vi Amor,
e ouço del sempre falar.
Pero sei que me quer matar,
mais rogarei a mia senhor
que me mostr'aquel matador,
ou que m'ampare del melhor.

Pero nunca lh'eu fige ren
por que m'el haja de matar;
mais quer'eu mia senhor rogar,
polo gran med'en que me ten,
que me mostr'aquel matador,
ou que m'ampare del melhor.

Nunca me lh'eu ampararei,
se m'ela del non amparar;
mais quer'eu mia senhor rogar,
polo gran medo que del hei,
que mi amostr'aquel matador,
ou que mi ampare del melhor.

E pois Amor ha sobre mí
de me matar tan gran poder,
e eu non o posso veer,
rogarei mia senhor assí
que mi amostr'aquel matador,
ou que mi ampare del melhor.


Nuno Fernandes Torneol [século XIII]
Trovador Lusitano e Cavaleiro na corte do rei Afonso X de Leão e Castela.

[Cantiga de amor composta em Português Arcaico, ou Galaico-português]

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Antologia Poética



Do eterno mistério

"Um outro mundo existe... uma outra vida..."
Mas de que serve ires para lá?
Bem como aqui, tu'alma atônita e perdida
Nada compreenderá...

* * * * * * * * * *
A oferenda

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio.

* * * * * * * * * *
Hai-kai

Rosa suntuosa e simples,
como podes estar tão vestida
e ao mesmo tempo inteiramente nua?

* * * * * * * * * *
Outro princípio de incêndio

...a tua cabeleira feita de chamas negras...

* * * * * * * * * *
Sempre

Jamais se saberá com que meticuloso cuidado
Veio o Todo e apagou o vestígio de Tudo
E
Quando nem mais suspiros havia
Ele surgiu de um salto
Vendendo súbitos espanadores de todas as cores!

* * * * * * * * * *
Tristeza de escrever

Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:
Por isso a palavra escrita é sempre triste...

* * * * * * * * * *
Carreto

Amar é mudar a alma de casa.

* * * * * * * * * *
Elegia

Minha vida é uma colcha de retalhos,
todos da mesma cor...

* * * * * * * * * *
Do belo

Nada, no mundo, é, por si mesmo, feio.
Inda a mais vil mulher, inda o mais triste poema,
Palpita neles o divino anseio
Da beleza suprema...

* * * * * * * * * *
Para escreveres num cartão postal

Ó céus de Porto Alegre,
Como farei para levar-vos para o Céu?!

* * * * * * * * * *
Envelhecer

Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.


Mario Quintana [1906-1994]
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"Só atrapalha a criatividade. O camarada lá vive sob pressões para dar voto, discurso para celebridades. É pena que a casa fundada por Machado de Assis esteja hoje tão politizada. Só dá ministro." M.Q.

"Se Mario Quintana estivesse na ABL, não mudaria sua vida ou sua obra. Mas não estando lá, é um prejuízo para a própria Academia." Luís Fernando Veríssimo

"Não ter sido um dos imortais da Academia Brasileira de Letras é algo que até mesmo revolta a maioria dos fãs do grande escritor. A meu ver, títulos são apenas títulos, e acredito que o maior de todos os reconhecimentos ele recebeu: o carinho e o amor do povo brasileiro por sua poesia e pelo grande poeta e ser humano que ele foi..." Cícero Sandroni